top of page
Buscar
  • Foto do escritorEduardo Machado Homem

Acidente ZERO: herói ou vilão?

Quando nós discutimos o tema segurança do trabalho é importante ter em conta que se trata da integridade física e mental de pessoas.

A frase acima parece ser uma obviedade, no entanto, alguém sempre acaba esquecendo que o tema central da segurança são as pessoas. Esquecem quando, intencionalmente, privilegiam exclusivamente a abordagem racional técnico-científica ou quando se entende que o ser humano é puramente sentimento e emoção.

Nem tanto uma coisa, nem tanto a outra.

Temos uma porção racional e outra emocional. Neurocientistas afirmam que a parte emocional opera sobre a racional, ou seja, decidimos baseados em nossas emoções e depois racionalizamos para que tudo possa se encaixar e fazer sentido racionalmente.

Focar exclusivamente nos aspectos racionais envolvidos em qualquer discussão pode comprometer nossa argumentação na mesma medida em que o foco único no apelo emocional das situações leva às decisões erradas. O risco de assumir um destes vieses está em cair na armadilha da falácia ou do sofismo, ou seja, usarmos argumentos verdadeiros (ou falsos) deslocados da sua área de aplicação usual para dar fundamento àquilo que pretendemos afirmar e defender, mesmo que seja uma inverdade.

Há inúmeros pensadores que afirmam que o maior objetivo das pessoas em uma discussão não é chegar a um consenso ou entender melhor uma determinada situação ao ponto de, eventualmente, mudar de opinião. O objetivo para esses pensadores seria, simplesmente, ganhar a discussão.

O filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860) descreve em “A Arte da Controvérsia” diversas estratégias para vencer uma argumentação, mesmo quando a razão não está ao seu lado. Uma destas estratégias é generalizar as afirmações do outro, levando os argumentos para fora do ambiente a que se aplica e generalizando-o para exagerar a sua aplicação. Assim, desmontar o argumento fica muito mais fácil, pois se ele não serviu em algumas das situações generalizadas, conclui-se que o argumento não serve em momento algum.

Um exemplo banal: você está lendo esse texto e para isso precisa estar de olhos abertos. Logo, sempre que você está de olhos abertos, você está lendo algo. Eu usei duas informações verdadeiras e específicas para o momento atual da sua leitura, isto é, você está lendo e está de olhos abertos. Em seguida, generalizei ao afirmar que as duas situações têm relação direta de causa-efeito, o que não é verdade.

Mas o que isso tem a ver com zero acidente, zero resíduo e zero emissões de carbono?

Há quem, ancorados pelas leis da física e da natureza, argumentará que nada disso é possível. Usarão, por exemplo, o fato científico e comprovado que nenhuma matéria no universo pode atingir a temperatura de zero absoluto. O zero absoluto é a menor temperatura na natureza e equivale a zero K (lê-se zero Kelvin), na qual todas as partículas estão em repouso absoluto, sem vibração. O zero absoluto, ou zero Kelvin, é equivalente a -273,15 ºC. Como a temperatura de zero Kelvin é impossível, zero acidente também o seria.

Também podemos afirmar que, matematicamente, o zero representa a nulidade ou ausência de valor e, como o acidente é um evento possível, zero acidente é um conceito equivocado.

Uma maneira de validar argumentos científicos está na aplicação generalizada em outros campos para avaliar sua significância. Se usarmos os argumentos da temperatura de zero absoluto e do conceito matemático da nulidade do zero nas expressões “carro zero quilômetro” e “zerar o cronômetro”, por exemplo, poderíamos dizer que o tal carro não existe ou que o cronômetro deixaria de existir ao iniciá-lo? Claro que não, afinal, são expressões abstratas e subjetivas para as quais são atribuídos significados subentendidos. Carro zero quilômetro é aquele que nunca teve uma pessoa física (ou jurídica) como proprietária além da montadora e zerar o cronômetro significa que a contagem de tempo será reiniciada. Essa é uma das belezas da nossa língua portuguesa e da habilidade de comunicação do ser humano.

Fugindo do campo racional para tentar se estender à gestão de pessoas, há um argumento sobre o quanto a abordagem do zero acidente pode constranger as pessoas na comunicação do acidente, ou seja, qual empregado quer ser aquele que, uma vez vítima de acidente, terá a coragem de comunicar o próprio acidente ou até mesmo um incidente sem danos ou lesões?

A defesa de que o zero acidente não deveria ser reverberado nas organizações não para apenas nisso e existem livros dedicados apenas a condenar a abordagem do zero.

Enfim, a impossibilidade do zero Kelvin absoluto é real, o conceito matemático sobre a nulidade do zero é verdadeiro e a placa de zero acidente na frente da fábrica pode constranger. Mas isso tudo racionaliza o cuidado com as pessoas em um nível que torna o tema central da segurança, as pessoas, um fardo para ser carregado por aqueles que deveriam fomentá-lo.

Eu não estou defendendo que ignoremos a abordagem técnico-científica na segurança, afinal eu sou um engenheiro. Segurança do trabalho e ciência precisam estar juntas, sempre.

Eu também não estou encorajando que façamos segurança a partir do constrangimento do trabalhador. Isso é errado, nefasto, contraproducente e não constrói um ambiente de segurança psicológica, essencial para uma cultura de segurança madura.

No filme Náufrago (Cast Away, em inglês) a personagem principal do Tom Hanks, John Noland, busca sua sobrevivência ao longo de 4 anos até que é resgatado. Este é apenas o resumo brevíssimo do roteiro de um filme, mas a internet está cheia de histórias reais de pessoas que se perderam no mar por meses e anos. Para aqueles náufragos que sobreviveram e dos quais foi possível coletar depoimentos, havia a crença absoluta de que a vida é possível e que não havia outra opção a não ser se manter vivo, apesar de toda a imensidão do mar azul ao redor dizer que era impossível.

Eu defendo que o uso de abordagens e campanhas de comunicação baseadas na garantia da própria segurança ou na expectativa de se reencontrar com sua família no final do dia não terão o efeito desejado se estiverem desvinculadas de esforços consistentes e estratégias relacionadas à gestão, investimentos e engajamento genuíno da liderança e das equipes. Ao mesmo tempo, eu também sei que um discurso pleno de racionalidade e ciência não moverá as pessoas na direção de um objetivo. As pessoas são movidas por propósitos que conversam com suas próprias intenções, valores e sentimentos.

Ter filhos e educá-los é um trabalho árduo e compensador que ajuda a entender o contexto exposto no parágrafo anterior.

Nenhum pai ou mãe aceitaria, pelo menos não o que escreveu este texto, uma política de segurança para seus filhos e filhas diferente de acidente zero. Para buscar este objetivo, provemos uma alimentação saudável, exercícios físicos através do esporte e do brincar livre, interação social na escola e em parques públicos, orientação, educação, suporte médico e tudo o mais que for possível prover. Ainda assim, eventualmente, sabemos que não será suficiente, isto é, as crianças cairão de bicicleta, levarão tombos e tropeçarão. Enfim, sabemos que irão se machucar e fazemos todo o necessário para garantir que quando acontecer, se machuquem o menos possível. Além de tudo isso, ainda teremos que ensinar as crianças a lidar com a frustração do erro, do tombo e assim por diante. E depois, voltamos ao zero acidente de novo, incansavelmente.

Zero acidente não pode ser sobre meta. Não dá para comparar o zero acidente com variáveis físicas ou conceitos matemáticos porque, simplesmente, não fazem parte do mesmo plano de ideias.

Zero acidente é sobre intenção, compromisso, propósito e valor.

Há alguns anos, meu pai sofreu um acidente de trabalho. Ele estava fazendo uma inspeção em equipamentos no quinto andar de um prédio administrativo quando pisou sobre uma chapa de madeirite que estava sendo usada para tampar um buraco no piso que transpassava toda a laje. A chapa cedeu e meu pai caiu de um andar para o outro, cerca de seis metros. Ele sofreu inúmeras fraturas na perna, passou por um processo de recuperação dificílimo e sobreviveu. E muito bem, diga-se. Ele se tornou avô 5 vezes e deve se tornar bisavô, em breve. Pelo menos, esse é o plano.

Conto essa história porque os momentos que passamos dentro de casa durante a recuperação dele foram muito complexos. Para quem passa por momentos assim, para a família que passa por esse tipo de situação, a vontade é que o acidente nunca tivesse acontecido. Nem consigo, nem com ninguém. Pela forma que se deu o evento e como ele foi gerenciado pela empresa durante a recuperação de meu pai, posso dizer com clareza que o compromisso organizacional com a integridade física e mental de meu pai foi nula, e cumpriram apenas aquilo que poderia comprometer a empresa num eventual processo jurídico.

Para aqueles que se expõe ao risco de acidente diariamente, o tempo todo, o único compromisso que vale é aquele relacionado à saúde e segurança dos trabalhadores e eu não consigo vislumbrar compromisso maior do que o GENUÍNO acidente zero amparado por ações estruturantes, investimento, gestão e liderança engajada.

Como diz o ditado popular: não podemos ser como a galinha que se compromete em oferecer o ovo, temos que ser como o porco que se compromete com o torresmo. Comprometer-se como o porco é comprometer-se com o acidente zero. Aliás, tenho a tendência de pensar que negar o compromisso com o acidente zero é uma forma sutil e elegante, que até parece inteligente, de fugir do objetivo único e central na segurança do trabalho: preservar vidas.

Como podemos nos comprometer com a segurança das pessoas sem nos comprometer com a sua integridade física e mental total?

Zero acidente não é um mantra como pensamento positivo para ajudar o universo a atrair aquilo que você deseja. Zero acidente é o compromisso de líderes com suas equipes, é o leme que dá sentido para as ações de gestão, de desenvolvimento da cultura, de engajamento da liderança, de investimentos e de garantia da licença social e moral para as empresas operarem.

Assumir uma estratégia de zero acidente para a sua organização não significa admitir, aceitar e ser conivente com uma política de gestão de pessoas que flerte com a instrumentalização dos líderes com ferramentas de assédio e de constrangimento para que acidentes não sejam comunicados ou que placas comemorativas de ausência de acidente sejam usadas como uma forma de pressionar os trabalhadores.

Não se nega que esse tipo de coisa aconteça, mas é de grande valia perceber e entender que a empresa ou o líder que deseja impor um ambiente de constrangimento dos trabalhadores não precisa de um slogan ou de uma placa para tal, muito pelo contrário. Este tipo de atitude é percebida em maneiras muitíssimos mais sutis e discretas, afinal, se não fosse assim, o uso de tais placas de zero acidente e o próprio termo estariam presentes em processos jurídicos de assédio moral. Tema cujo monitoramento faz parte das atribuições da CIPA, atualmente.

Eu entendo que colocar a responsabilidade pela subnotificação de acidentes na estratégia de zero acidentes é mais uma forma, travestida de pensamento crítico inteligente, de não ir ao cerne do problema: a cultura de segurança imatura e a liderança pouco comprometida. Estes são dois temas muito difíceis de trabalhar de forma estruturante e politicamente dentro de qualquer organização. Condenar o pensamento centrado no zero acidente e sugerir a remoção de placas me parece mais fácil e cômodo.

É muito relevante entender todos os questionamentos sobre a validade da estratégia do pensamento em torno de zero acidente, considerando o contexto em que tais dúvidas são colocadas. Há um movimento bastante interessante de reafirmação de conceitos científicos e significantes relacionados à gestão, liderança, cultura e comportamento. Para este movimento, são aplicadas diferentes titulações, como segurança 2.0, segurança diferente, HOP (acrônimo para desempenho humano e organizacional, em inglês), novas visões de segurança e fatores humanos.

Estas diferentes filosofias, como preferem ser chamadas, trazem à tona conceitos que estão entre nós há bastante tempo e que tratam da forma como a gestão, os processos, os desvios, os erros e comportamentos diversos devem ser encarados, entendidos, estudados e analisados. Está sendo de grande valia para extirpar ideias equivocadas como a culpabilização das vítimas de acidente ou que o trabalhador é senhor absoluto de todas as suas escolhas e que o ambiente organizacional não teria influência sobre isso.

A popularização de conceitos relacionados à influência que o ambiente organizacional exerce sobre o comportamento dos trabalhadores servirá para que líderes entendam melhor e de forma apropriada como a percepção dos riscos acontece, como improvisos são pensados, como erros são cometidos e como podem controlar riscos efetivamente através do envolvimento de todos na concepção, definição, realização e aprimoramento das tarefas, atividades e processos.

A dúvida que paira sobre isso e que ainda é algo a ser redefinido está na intenção de expurgar ideias, ideais e outras formas de pensar para se estabelecer um outro jeito de fazer segurança. Não há que se substituir ou tornar aquilo que está sendo aplicado em terra arrasada para que algo novo venha, pois não é assim que coisas boas são construídas em nenhuma esfera de nossas vidas, sejam particulares ou profissionais. Temos que entender a renovação como um processo em que boas coisas sejam mantidas e aquilo que precisa ser revisto, assim o seja para algo melhor.

Definitivamente, não enxergo a estratégia de acidente zero como uma meta ou algo que tenha um fim em si mesmo, mas como um impulso sobre a inércia de gestores em continuarem fazendo gestão como sempre fizeram.

Eu vejo o acidente zero como o primeiro degrau para uma gestão de segurança humanizada, com as pessoas no centro dos negócios e a sustentabilidade se tornando uma realidade além da aspiração.

Usar a ideia temática do acidente zero como uma forma de ludibriar equipes e gestores para fazê-los pensar que a segurança das pessoas é levada à sério mesmo que as ações não coadunem com isso é ultrajante e antiético. Eu creio que estaria no mesmo nível daquele influenciador que prega o combate à fome em nosso país, mas que não doa um único real do próprio dinheiro.

Me parece que, por não observarmos que as ações estejam dando o resultado desejado em termos de gestão do risco, acabamos por sacrificar nossos ideais. Apenas mudar o rótulo, ou enterrar estratégias porque seus executores não foram competentes, é como punir a pedra que quebrou a vidraça do carro.

Outra coisa importante que está vindo na rabeira dos ditos novos entendimentos em gestão de segurança e que precisa ser mais bem explorado e compreendido é a associação da punição injusta e desmedida à responsabilidade por lidar com a consequência das escolhas equivocadas.

Mas isso é um tema a ser abordado num próximo artigo, pois se trata de um assunto muito mais polêmico e difícil do que o acidente zero. #segurançadotrabalho #culturadesegurança #liderança #hop

0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments

Rated 0 out of 5 stars.
No ratings yet

Add a rating
bottom of page